quinta-feira, 26 de julho de 2007

Do cálculo de conversão da moeda cinematográfica

jorge me falouDesde pequeno sempre tive sonhos que eram interrompidos. Como lia muitas histórias em quadrinhos sempre sonhava que eu era algum dos personagens. O salto com a pose do Tio Patinhas mergulhando entre as moedas sempre me causava medo, porque acho que deve ser doloroso mergulhar entre as moedas - não pela solidão: pela dor física mesmo.
Sonhava também que era o Gastão, aquele sortudo que via possibilidades em todas coisas que encontrava pelo caminho: um trevo de quatro folhas, uma estrela cadente, uma moedinha de R$ 0,10. Quando eu encarnava esse personagem nos meus sonhos era sempre muito bom e eu não queria que o sonho terminasse. Quanto menos eu queria acordar, mais eu saía do sonho. Quanto mais eu me aproximava da moedinha, mais angústia me dava, proque eu sabia que iria acordar e a moeda... tão sem valor...apenas dez centavos...ia ficar sempre para, talvez, o próximo sonho...

O tema do sonho se tornou objeto de estudo para mim: li Sete Noites, de Borges; li alguma coisa de Freud, assisti a Waking Life. Os anos se passaram e, na tentativa de aprisionar a idéia, decidi escrever um pouco sobre esse sonho: o desespero a tentativa de alcançar aqueles R$ 0,10, tão sem valor... E escrevi um roteiro. O título: Dez Centavos. Uma tetantiva de começar a sonhar a partir desse ponto.
Por mais que o roteiro fosse baseado em um sonho, o roteiro é uma idéia estuturada para virar um filme. E, como todas as coisas, seguiu seu caminho: foi selecionado no Prêmio Braskem, para receber fomento para a produção: R$ 100.000,oo!! O que para todos os roteiristas iniciantes seria um sonho, para mim foi mais um tormento. O de não atingir a moeda de Dez Centavos: qual a importância de se ganhar cem mil reais para se fazer um filme cujo título é Dez Centavos e cuja trama central gira em torno de um menino de rua que toma conta de carros? Não seria melhor proporcionar um destino melhor para essa verba, tão pública quanto as ruas e quanto os meninos de rua?
A discussão estava fora de questão: o roteiro foi premiado e a produtora Santo Forte, ajudou ao diretor César Fernandes a produzir o filme e finalizá-lo em 35mm.
Dia 24 de julho saí do cinema tomado pela beleza do filme, muito mais bonito do que os meus sonhos, mas com a mesma angústia: o protagonista do filme tampouco consegue os R$ 0,10... tão sem valor...
Saí do cinema, parabenizei o diretor e segui o meu caminho tentando entender - ou sonhar em entender - como esses R$ 100.000,oo poderiam melhorar a angústia de quem- não em sonho, mas na realidade dura e cruel - vive em busca de conseguir R$ 0,10 ao longo do dia. São 1.000.000 de moedas de 10 centavos. Não, não valia a pena tentar calcular matematicamente. Nem de qualquer outro modo que não seja com o sentimento da esperança. A esperança de que o roteiro seja, um dia, apenas uma ficção tão distante que não guarde nada de verossimilhança. A esperança de que o protagonista do sonho, do filme - tão real...! - encerre um dia a sua busca por alcançar os dez centavos para a sua sobrevivência ao longo de um dia.
Os elogios ao filme vieram: de ordem técnica, artística, empresarial, de pompas e gala. Mas houve um comentário que me fez entender o cálculo real e a conversão de R$ 0,10 em R$ 100.000. E destes num valor que se eleveria à infinita potência em busca do amor pelo homem, tão homem quanto o que ama.
Um aluno de 16 anos me disse que gostou muito do filme e que nunca mais conseguiu olhar para R$ 0,10 do mesmo jeito. O comentário valeu os R$ 100.000,00.
Que o filme siga seu caminho; que seja visto, revisto, admirado pela sua beleza, técnica, narrativa, mas, sobretudo, que seja revelador da angústia de quem olha para os R$ 0,10 centavos, tão inacessíveis.
Deixo aqui um trecho de João Cabral, poeta que também sonhou em que a moeda inatingível fosse alcançada.
".........
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.
Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.
Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.
Neto, João Cabral de Melo. O Cão sem Plumas, In Obras Completas , Editora Nova Aguilar

6 comentários:

Isadora Sodré disse...

Sempre faltam 10 centavos em todas as coisas que eu vou fazer, quando eu vou pegar o onibus, quando eu vou lanhcar, quando eu vou comprar meu refrigerante, quando eu quero dar algum trocadinho pra aquele menininho que passou pedindo dinheiro com tanat educação.


Uma pena que eu não tenha conseguido ficar para ver todo o filme, mas eu tenho certeza que um dia eu ainda vou vê-lo.

muito abraços apertados (:

Anônimo disse...

a moeda de quem sonha é dura, mas quem disse que atingir o paraíso é fácil?

Anônimo disse...

nao há destino melhor para as milhares de moedas de 10 centavos do que um filme. um filme que vale muito mais do que qualquer moeda, de qualquer valor. que vale um sonho concretizado (sim, pq nao sao tds que precisam ser interrompidos), que vale uma reflexao, uma história tornada pública, que vale uma poesia, que vale uma fotografia, um suspiro da poltrona, pq o cinema pode tb ser muito mais espesso.

*e eu ainda nao assisti.
bju rei.

Iracema Chequer disse...

Lembro do dia que recebi por e-mail esse roteiro... Me encantei, vc sabe!
Uma coisa: eu não sabia do dia da estréia! Claro que teria ido!
Mais outra coisa: ainda quero muito assistir ao filme, mesmo que ele possa desestruturar o que já tenho em mente quando li pela primeira vez...
Parabéns e sucesso sempre, vc merece!!!

Atchim, espirros poéticos. disse...

Por mais que o filme tenha custado R$100.000 e, provavelmente, mais alguns trocados, esse "dez centavos" não tem preço, porque poesia não tem preço... mas tem valor. E vale muito mais a pena se apegar à valores do que à preços.

Se a poesia não tem preço, por outro lado, a fome(seja lá do que for) tem um preço em que até os, supostos míseros, R$ 0,10 centavos saem caro. Supostos míseros, mas longe de serem.
Se a questão é como acabar com a real e espessa fome e você não tem a resposta Rei, não se preocupe, acho que muita gente, além de eu e você, vaga por aí a procura dela... Eu, particulamente, acredito que ela não esteja em números.

Um beijo da aluna.
(Safira)

Anônimo disse...

Parece que sempre nos falta R$0,10 pq na verdade não sabemos o que é, realmente, faltar.
Mas a a vida é assim,não é mesmo? É correr atrás dessa moeda, mesmo que não a tenhamos no final. Correr atrás dessa moeda é viver. É buscar.


Vi o filme, adorei. Não preciso dizer que chorei, que me tocou a alma e o coração.
Parabéns, IG.

Sucesso já é uma moeda garantida!

Iglina.