terça-feira, 29 de maio de 2007

Uma ajudinha, pelo amor de Deus

Como sempre, cheguei ao cinema um pouco mais cedo. Era fim de tade e a sessão começaria às 18h30. Estacionei o carro e, como em todas as cidades grandes da América Latina, apareceu um desses garotos gentis que ficam tomando conta do carro da gente enquanto vamos para os bares, restaurantes, cinemas...
- Tio, posso olhar seu carro?
Expliquei para meu sobrinho gentil que estava sem dinheiro trocado, mas que na volta eu daria. Ele saiu aborrecido, triste mesmo...mas não havia o que fazer. Não naquele momento: só tinha uma nota de R$ 50,00.
Desci a escada do cinema, comprei meu ingresso e fui tomar um café - último beijo antes do filme começar. Na mesa ao lado, havia um casal de namorados aguardando a sessão. A conversa entre eles me chamou a atenção, primeiro, pelo tema: falavam do meu sobrinho gentil; depois pela forma como se referiam ao garoto; e, finalmente, pelo diálogo em si.
- Pra menino que fica tomando conta de carro, eu não dou dinheiro - disse o mais alto.
- Nem eu - o de óculos concordou.
Achei que a conversa tinha terminado por aí, porque não há nada mais triste do que pessoas que se prolongam em conversas sobre assuntos complexos sem colocar um porém sequer. Coloquei as habituais três colheres de açúcar no expresso.
- Que garantia ele poderia me dar de que o carro ainda estará lá?
Continuou desafiando qualquer resquício de inteligência que passasse nas proximidades. Tomei o café.
- Imagine que outro dia eu cheguei ao cinema e esse moreninho que estava lá na rua agora, pediu dinheiro para uma moça. Ela deu. Eu desci, a moça desceu e o moleque desceu atrás. Entrou na fila e comprou o ingresso. Imagine! Qua absurdo! Pedir dinheiro para ir ao cinema.
Tomei o café e deixei a mesa. Fui ao guichê e comprei outro bilhete. Ainda faltavam uns 20 minutos para a sessão começar. Subi a escada e fui para a rua procurar o menino. Não estava próximo a meu carro. Já era noite. Vi meu sobrinho (nosso sobrinho) do outro lado da rua, uns 200 metros distantes de onde eu estava. Atravessei e me dirigi ao local onde ele estava. Um casal vinha pelo passeio. Meu sobrinho se afastou do carro, levantou a camisa. O casal vinha em sentido contrário ao meu.
- Ei!! Tio!! - eu gritei. Os tios constumam usar de reciprocidade no tratamento com os sobrinhos.
Ele se virou. Estava contando o dinheiro que estava dentro de um saco plástico na cintura. O casal passou por nós.
- Toma. Trouxe um ingresso pra você.
- Pô! Valeu! - agradeceu sem desviar o olho do ingresso. Mas esse eu já assisti. Disse devolvendo o ingresso.
-Ah é? E o que você achou? - testei a veracidade da informação.
- É assim: parece engraçado, mas eu não ri. Parece que é verdade, mas não é.
O filme era Ó Paí, Ó. Não pude contra-argumentar: ainda não tinha visto o filme e, convenhamos, quem sou eu para falar de realidade com meu sobrinho gentil? Fui saindo devagar de volta ao cinema.
- E o ingresso? ele perguntou, enquanto guardava o dinheiro contado.
- Vou ver se troco para alguma sessão de amanhã.
- Mas só tem Ó Paí, Ó. E você não vai ver duas vezes. Se você quiser, eu tenho um amigo...Ô, Fulô!!!
Apareceram mais dois sobrinhos. Quantos sobrinhos tempo por aí.
- É que o moço tem um ingresso que ele não vai usar.
Mas eu só tinha um e... . Não. Eu tinha dois. Entreguei os ingressos e eles saíram correndo sem nem agradecer: a sessão já ia começar. Dei as costas e fui para o carro. Quando fechei a porta do carro, o meu sobrinho bateu no vidro. Agora eu já tinha dinheiro trocado. Dei R$ 0,50. Ele agradeceu. Eu também. Fui para casa torcendo que os meninos sentassem em um lugar bem distante daquele casal de namorados para não se contaminarem de ficção.

4 comentários:

Anônimo disse...

continuo gostando do seu jeito de escrever...sensível e detalhista como ninguém...

saudade, neguinho!

Unknown disse...

você não perdeu muita coisa, em todos os sentidos.
já os meninos, com tantos tios, foram 'acabar' com a ficção de alguns.
:*

Anônimo disse...

minha butuca me fez descobrir uma outra Isadora.

bom, muito bonita essa identificação mass, quem comentou foi Isadora Magalhães.(soou engraçado)

ronc

Anônimo disse...

Os niilistas que não leiam esse texto. Ou melhor, que leiam, mas de portas abertas!