sexta-feira, 11 de maio de 2007

Sob os Afagos da Chuva

Salvo em um texto de ficção surreal, a ninguém é dado o direito de escolher os pais. Menos ainda os seus avós. Pois bem, sou a exceção que confirma a regra: eu escolhi meu avô. Não pude escolher os quatro avós e nem os pais. Mas, ao menos um dos meus avós eu escolhi.
Uma tarde fui ao cinema. Sozinho, caminhei sem saber exatamente o que estava indo ver: nunca ouvira falar do filme ou do seu diretor. Caminhei sozinho desviando de toda a gente solitária e de um tempo que se afirmava em indicar o inverno. Acabara de ler Névoa, de Miguel de Unamuno, e andava com um guarda-chuva fechado, pendurado no braço. "La función más noble de los objetos es la de ser contemplados."
Cheguei à bilheteria da Sala Walter da Silveira e lá encontrei o cinema vazio. Não me admirei, mas achei que platéia já tivesse entrado. Paguei o ingresso - menos do que valeria aquela tarde: esse é o tipo de coisa que só acontece aos que se sentem órfãos no meio da multidão que anda, sem saber, a 24 fotos por segundo.
Entrei na antesala do cinema. Estava quase vazia. Havia apenas um senhor que lia um livro, esperando o tempo do filme chegar, esperando o tempo da vida passar. Vestia um paletó cinza, como as horas daquele dia, como os dias daquela vida. Diante dele, havia uma pequena mesa onde estava um xícara já vazia e um guarda-chuva fechado. Não como qualquer guarda-chuva: como o meu guarda chuva. Já não me sentia sozinho na sala.

Pedi um café. Na Piedade, a igreja tocava os sinos anunciando a Hora do Angelus. Nem o guarda-chuva, nem o senhor estavam mais na mesa. Apenas a xícara vazia. Tomei o café.

Entrei na sala vazia. As luzes, ainda acesas, pareciam emoldurar o silêncio. Sentei o mais centralizado possível, em busca do olhar do diretor. As luzes se apagaram e eu me movimentei procurando o senhor do saguão, do café, do livro, do guarda-chuva. Não estava.
O filme começou. Chuva, curta metragem holandês, de 14 minutos. Se o cinema se utiliza de todas as artes para se expressar, este filme usou aquilo de que nenhuma arte pode prescindir: poesia. Fim. Os créditos: direção de Joris Ivens. Ainda tomado pelo ritmo do filme, permaneci sentado na poltrona, lembrando do guarda-chuva que se abre, enquanto a janela se fecha; imaginando as decisões de um produtor em apoiar a que um diretor filmasse a chuva.
As luzes se acenderam. Levantei e fui saindo. Passei ao lado da sala onde fica o projetor. Na parede, estava um guarda-chuva, solenemente colocado, como a espada de um general. O operador do cinematógrafo era aquele senhor do saguão. Levantou o olhar que vinha acompanhado de um sorriso que esperava um elogio. Cumprimentou com um gesto com a cabeça, enquanto mexia na película, como um alfaiate que prepara o vestido da própria noiva. Acenei com a cabeça, mas não disse nada. Palavras são dispensáveis para os que carregam os guarda-chuvas fechados.

Na porta de saída, deparei-me com uma chuva torrencial. Vendo o filme, observei a vida. Percebi que tinha esquecido o guarda-chuva na sala do cinema. Voltei. As luzes estavam apagadas. Na tela, Chuva. Fui até a cadeira onde eu estava e peguei o guarda-chuva. Na fila da frente, na cadeira central, estava o operador. Saí silenciosamente.

Por alguns segundos, tive a sensação de que o senhor que estava assitindo ao filme, era o Joris Ivens. Joris Ivens que dirigiu o filme, que projetou o filme, que exibiu o filme, agora assistia ao filme. Por alguns segundos, tive a sensação de que o senhor que estava assitindo ao filme, era o Joris Ivens. Depois tive certeza.

Parado na porta da rua, via a água da chuva escorrer pelas escadas do cinema. Saí sem abrir o guarda-chuva. Nunca me senti tão protegido e tão forte,como nesse momento em que pude escolher Joris Ivens como meu avô.

5 comentários:

Anônimo disse...

Que lindo, ig....
LINDO!
ME lembrei durante todo o momento de um poema/música de vinícius.

"Por céus e mares eu andei
Vi um poeta e vi um rei
Na esperança de saber o que é o amor
Ninguém sabia me dizer
E eu já queria até morrer
Quando um velhinho com uma flor
Assim falou

O amor é o carinho
É o espinho que não se vê
Em cada flor
É a vida quando
chega sangrando
Aberta em pétalas de amor"
(O Velho e a flor - Vinícius de Moraes)

E esse velhinho, com o guarda-chuva, disse tudo isso, sem precisar abrir a boca.

Saulo Dourado disse...

Mania ocidental essa de explicar o que captou diante duma obra, não é? Pois então, faço contra-maré: senti e ponto. Tá, até libero uma segundo informação: senti beleza com som de chuááááá.

Isadora Sodré disse...

Repito a frase que foi dita acima:
"Senti e ponto."

Anônimo disse...

Eu senti mesmo foi a cena, completa, ali, instante único!

Anônimo disse...

pronto, velho. saulo sentiu direitinho.
senta e pronto!